Quando o Supremo Tribunal Federal (STF) decide suspender todos os processos que discutem a licitude de contratos de prestação de serviços – sob o pretexto técnico da repercussão geral –, o que está em jogo não é a formalidade de um rito processual, mas a espinha dorsal do mercado de trabalho. A chamada pejotização, tão brasileira quanto a jabuticaba e tão escorregadia quanto um contrato verbal com cláusula de exclusividade, foi convocada ao palco institucional.
A decisão do ministro Gilmar Mendes, proferida em 14 de abril no âmbito do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE 1532603), não é apenas um freio de arrumação; é um ato de ruptura. A afirmação de que a Justiça do Trabalho tem ignorado, sistematicamente, os precedentes do STF – produzindo insegurança jurídica e sobrecarregando a Corte – não é só um puxão de orelha. É um convite à redefinição de fronteiras institucionais. Como se dissesse, em juridiquês com sotaque filosófico: “Não se atravessa a rua fora da faixa hermenêutica do Supremo”.
Sob o verniz técnico do reconhecimento da repercussão geral (Tema 1389), esconde-se outro problema: quem manda no Brasil quando se trata de classificar uma relação de trabalho como autônoma ou subordinada? Quem decide se aquele que vende sua força de trabalho como pessoa jurídica está exercendo liberdade contratual ou disfarçando sua dependência econômica sob um CNPJ com endereço na sala de estar?
A Justiça do Trabalho, por décadas, respondeu a essas perguntas com convicção. Munida do “princípio da primazia da realidade”, recusou-se a aceitar o disfarce formal como prova de autonomia. Para o trabalhador médico, jornalista ou advogado, o contrato de prestação de serviços era, muitas vezes, desconsiderado, pela leitura de que se tratava de um vínculo empregatício. Essa leitura agora se vê confrontada por uma Suprema Corte que parece menos disposta a tolerar interpretações extensivas da CLT.
A crítica do Supremo atinge o conteúdo do que a Justiça do Trabalho vem decidindo. E não se trata de um debate trivial. A divisão social do trabalho brasileiro, marcada pela informalidade disfarçada e terceirizações em cadeia, encontra-se na encruzilhada entre a modernização e a proteção da pessoa humana.
O Brasil navega entre a insegurança jurídica da interpretação casuística e a fragmentação regulatória, que não se resolve com reforma trabalhista e jurisprudência. O artigo 3.º da CLT continua a ser o campo de batalha: habitualidade, subordinação, onerosidade e pessoalidade são colunas que sustentam (ou ruem) a ponte entre o CNPJ e a CLT. Só que os tribunais têm lido essas colunas com lentes cada vez mais diversas.
A suspensão nacional dos processos é um recado, mas também uma tentativa de restaurar a autoridade do STF. Gilmar Mendes, que já liderou mudanças de paradigmas nas áreas penal e tributária, agora mira a seara trabalhista, em que, ao que tudo indica, pretende estabelecer um marco interpretativo que impeça o uso do Judiciário como ferramenta de revisão de contratos civis.
E aqui mora o dilema: o STF parece querer blindar o uso da pejotização legítima contra interpretações paternalistas. Mas como distinguir, com precisão, a pejotização “do bem”? O texto constitucional e a jurisprudência não respondem sozinhos. Será necessário criar parâmetros de aferição, critérios objetivos, guias interpretativos.
Se há um mérito na decisão do STF, é o de tirar o País da zona cinzenta. A suspensão cria um momento para rever a lógica de decisões, abre espaço para o debate e prepara o terreno para uma jurisprudência que equilibre liberdade contratual e proteção social. Não se trata de abolir a CLT, nem de glorificar a autonomia privada. Mas de reconhecer que o contrato de prestação de serviços pode ser legítimo – e que presumir sua invalidade, apenas por haver um CNPJ, é reducionista e perigoso.
O Brasil está, mais uma vez, diante de um espelho jurídico que reflete sua ambivalência histórica: entre o paternalismo estatal e o liberalismo retórico. A pejotização, nesse contexto, é mais sintoma do que causa. O verdadeiro problema é o déficit de segurança jurídica, a multiplicação de interpretações divergentes, a ausência de um marco normativo claro. E, talvez, o excesso de decisões judiciais que ignoram o pacto entre partes adultas e capazes, como se a liberdade contratual fosse uma fantasia burguesa, e não um direito constitucional.
Ao final, o Supremo não suspendeu apenas processos. Suspendeu certezas, dogmas, narrativas. E nos deixou com uma pergunta incômoda: quando tudo pode ser lido de forma diferente, quem será o intérprete final?
Talvez a resposta esteja menos nas decisões e mais nos critérios. Menos no texto e mais no contexto. E talvez seja hora de admitir que o Brasil precisa de menos litígios sobre formas contratuais e mais consenso sobre os limites da autonomia e da tutela. O futuro da pejotização não está no CNPJ – está na nossa capacidade de construir um sistema jurídico que respeite o contrato sem ignorar a dignidade de quem presta o serviço.
Lúcia Regina P. Moioli, Advogada,L.LM. pela Cornell Law School, professora universitária, palestrante e escritora e André Souza, Advogado e L.LM. pelo Insper
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