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Para Leão XIV, o amor não tem hierarquia

Para Leão XIV, o amor não tem hierarquia

Em entrevista à Fox News, o vice-presidente dos Estados Unidos, J.D. Vance, apresentou a política de imigração de Donald Trump como se estivesse ancorada em valores cristãos. Segundo Vance, há um conceito fundamentalmente cristão de que “você [primeiro] ama sua família, depois ama seu vizinho, depois ama sua comunidade, depois ama os demais cidadãos do seu país. E, apenas depois disso, [você ama] o resto do mundo”. Para ele, a esquerda inverteu essa ordem: “Eles parecem odiar os cidadãos do seu próprio país e se importar mais com as pessoas do lado de fora das fronteiras”. A declaração pretendia legitimar, em termos cristãos, a política migratória de Donald Trump, marcada por deportações em massa, tratamento degradante e equiparação dos imigrantes a ladrões e estupradores. O então cardeal Robert Prevost — agora Papa Leão XIV — respondeu no X: “JD Vance está errado: Jesus não pede para ordenarmos o amor pelo próximo”.

A ideia de uma hierarquia, ou uma ordem do amor, ou ordo amoris, é apresentada no livro “A Cidade de Deus”, de Santo Agostinho. Lá, Agostinho argumenta que a queda moral dos seres humanos tem início quando o amor se desordena — quando se ama o que não deve ser amado ou se ama na medida errada, priorizando o inferior sobre o superior. Isso ocorre, segundo ele, quando há uma orientação para o amor carnal em detrimento do amor divino.

Depois, a ideia reaparece como ordo caritatis, a hierarquia do amor cristão, na “Suma Teológica” de Santo Tomás de Aquino. Para Aquino, a caridade deve ser ordenada segundo a proximidade ao fim último, que é Deus. Ele propõe uma ordenação do amor ao próximo com base em vínculos espirituais, naturais, morais e circunstanciais, sugerindo que devemos amar mais os parentes que os estranhos e mais os bons que os maus — tudo isso, porém, sem excluir a obrigação de amar o próximo de modo universal.

A ordenação do amor cristão parece entrar em tensão com os ensinamentos de Jesus na Parábola do Bom Samaritano (Lucas 10: 25-37). Nela, Jesus narra a história de um judeu ferido que não é socorrido por dois representantes da religião oficial, mas termina acolhido por um samaritano — figura estrangeira e hostil aos olhos dos judeus. Com isso, Jesus sugere que o “próximo” a ser amado não é definido por laços sociais ou religiosos, ampliando radicalmente o alcance da caridade.

Quando Vance mobilizou o conceito de “ordem do amor” para justificar a violenta política de Trump de combate à imigração, o Papa Francisco, que ainda estava vivo, enviou aos bispos americanos uma carta. Nela, reconheceu o direito de os governos desenvolverem “uma política que regule uma migração ordenada e legal”, mas lembrou que essa política deve respeitar o princípio da dignidade humana e que não é moralmente aceitável associar o status migratório irregular à criminalidade. Francisco lembrou também que Jesus foi um imigrante que teve de fugir com a família para o Egito.

Quando o então cardeal Prevost reagiu a Vance, ele de certa maneira apenas reiterou uma orientação da Igreja —orientação que, agora como papa, deverá manter. Na resposta a Vance, Prevost incluiu também um link para um artigo da teóloga cubano-americana Kat Armas argumentando que o conceito de ordenação do amor, tal como usado por Vance, trata o amor como se fosse um recurso limitado, a ser distribuído com parcimônia. Porém a mensagem de Jesus na Parábola do Bom Samaritano é de um amor generoso e abundante, que arrebenta as fronteiras e as hierarquias.

Ao reafirmar que Jesus não impõe uma ordem hierárquica ao amor, Leão XIV não apenas contesta a leitura distorcida de Vance, mas recupera o cerne da mensagem cristã: um amor universal que não mede a dignidade pelo lugar de nascimento. Embora os Estados Unidos tenham o direito de estabelecer sua política migratória, esse direito não inclui a prerrogativa de tratar pessoas com crueldade e em desacordo com as leis vigentes. O papa também denuncia o uso cínico de argumentos teológicos para justificar uma política que hierarquiza não o amor, mas a dignidade humana, invertendo o espírito do Evangelho. A resposta de Leão XIV é, ao mesmo tempo, um repúdio à instrumentalização da fé e uma reafirmação do cristianismo como princípio de compaixão e justiça.

Pablo Ortollado, jornalista

Fonte: https://oglobo.globo.com/