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Nem mesmo o óbvio

Nem mesmo o óbvio

O Supremo Tribunal Federal (STF) demorou meia década para deliberar sobre o óbvio. Parcialmente, falhou. Na quarta-feira, em decisão conjunta, os 11 ministros concluíram que a revista íntima vexatória é inconstitucional, por humilhante, desumana, ilícita. Para quem não está ligando a denominação à prática, trata-se de procedimento aplicado em penitenciárias Brasil afora que obriga visitantes de detentos — incluindo crianças e idosos, muitas vezes em grupo — a se despir completamente, agachar três vezes sobre um espelho, tossir, contrair os músculos e abrir com as mãos as partes íntimas diante de agentes do Estado, não raro, do sexo oposto. Ontem, também num voto construído em consenso, a Corte listou medidas complementares ao plano de redução da letalidade policial exigido do governo do Rio de Janeiro, após a explosão de mortes por agentes do Estado em favelas, em plena pandemia da Covid-19. Pelo caminho, ficaram a proibição de fazer helicóptero de plataforma de tiro e usar escolas e unidades de saúde como base de operações pelos órgãos de segurança.

A ADPF das Favelas, nas palavras de Eliana Sousa Silva, diretora da Redes da Maré, uma das mais respeitadas, consistentes e coerentes defensoras de direitos humanos do país, serviria para o Supremo sinalizar à sociedade se o “Estado pode agir nas favelas e periferias sem respeitar as mesmas regras” que valem noutras áreas. Desde a decisão que, cinco nos atrás — após o assassinato, até hoje impune, do menino João Pedro, aos 14 anos, numa incursão mal explicada de policiais no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo (RJ) —, proibiu operações injustificadas em comunidades fluminenses, a resposta parece ter mudado de “não” para “depende”.

É verdade que o STF manteve determinações importantes, caso do uso de câmeras corporais pelos agentes; da preservação das cenas de crime para perícia; da comunicação imediata ao Ministério Público estadual de casos de letalidade policial; da abertura de inquérito pela Polícia Federal quando houver indícios concretos de crimes com repercussão interestadual, bem como o envolvimento do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), da Receita Federal e da Secretaria de Fazenda do estado nas diligências. O futuro dirá. Mas resta evidente que a pressão do governador Cláudio Castro (PL) e do prefeito do Rio, Eduardo Paes (PSD) — este crescentemente envolvido no debate sobre segurança pública —, atenuou a posição da Corte em relação ao voto original do relator Edson Fachin.

Violência esteve entre as prioridades do eleitorado na corrida municipal do ano passado. Foi o problema mais citado pelos brasileiros na pesquisa Quaest desta semana. O governo federal hesita em assumir protagonismo, enquanto o crime organizado se espraia por todas as regiões; domina porções cada vez maiores de áreas urbanas; rivaliza com setor privado e concessionárias em negócios e serviços públicos. Governadores ora se eximem de responsabilidade, como Castro no Rio, ora exageram na brutalidade, como Tarcísio de Freitas (Republicanos) em São Paulo, onde uma em cada três mortes de crianças e adolescentes em 2024 foi causada pela polícia, informaram ontem o Unicef e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Prefeitos empoderados pelo recado das urnas prometem guardas municipais armadas até com blindados, como o alcaide de Maricá, Washington Quaquá (PT), para coibir controle de territórios e crimes de rua. Há um pavor generalizado com roubos e furtos de celular. São aparelhos que, no passado, guardavam agendas de contatos e permitiam ligações; hoje, guardam identidade, rotina de trabalho, operações bancárias, serviços públicos e, não menos importante, memórias da vida toda de pais e mães de família.

O STF reconheceu a omissão do Estado em garantir o direito de moradores de favelas à segurança pública, admitiu a violação de princípios fundamentais e de direitos humanos pelas organizações criminosas nos territórios. Indicou o Conselho Nacional do MP para coordenar o grupo de trabalho encarregado de acompanhar o cumprimento do voto pelo governo fluminense. No caso da revista vexatória, fixou prazo de 24 meses para os estados que ainda não contam com scanners corporais, esteiras de raios X e detectores de metal providenciarem equipamentos para monitorar o acesso de visitantes. É fundamental que a sociedade civil, incansável na luta por direitos nas ruas, nas redes sociais, nos tribunais, faça dos votos da Corte, ainda que não integralmente satisfatórios, bússola a orientar o debate sobre direitos e políticas públicas em tema, mais que essencial, civilizatório.

Flávia Oliveira, jornalista

Fonte: https://oglobo.globo.com/