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Apertem os cintos: o humor sumiu

Apertem os cintos: o humor sumiu

Procure um bom programa humorístico na TV aberta. Encontrou? Pois é, pode dar descanso ao controle remoto: o humor sumiu. Imbuídos das melhores intenções do politicamente correto, ao jogarem fora a água do banho (o racismo recreativo, a ridicularização de minorias sexuais, a desumanização de pessoas com deficiência, a objetificação da mulher etc.), descartaram também a bacia, o bebê, o berço e a babá.

O humor — como a Vila de Noel e a crase — não foi feito para humilhar ninguém. É só uma quebra de expectativa, uma subversão da lógica, um olhar para o absurdo. Mas requer — de quem faz e de quem consome — inteligência e coragem, insumos escassos no mercado.

O espaço onde um dia vicejaram experimentos como “TV Pirata”, “Casseta & planeta”, “Os normais” e “Zorra” é hoje um terreno baldio. A graça se mudou de mala e cuia para a internet e para os espetáculos de stand-up, onde o humorista atua por sua conta e risco.

Só lá você encontrará a Dona Fernandona, do Thiago Chagas, tirando sarro dos cacoetes de interpretação da imortal Fernanda Montenegro. E Chico Raiz, sommelier de botecos pelo mundo e especialista em brique — ou pequenos negócios, para ti que, ao contrário do Francisco Cechin Junior, não fala gauchês. É ali que topará com a vida de Tina (cara da Isabela Mariotto, voz da Júlia Burnier), a progressista que quer expiar todas as culpas da burguesia sem abrir mão dos privilégios jamais. Ou com a arquetípica fauna urbana de Fernanda Fuchs e Dig Verardi. Nenhum deles deve nada aos grandes humoristas do passado, mas dificilmente teria na televisão (que acha que precisa agradar a todo mundo) a liberdade que encontrou em seus nichos. O mesmo vale para a iconoclastia do “Porta dos fundos”, a agudeza do Fábio Cruz (o Fabão), a criatividade anárquica do André Gabeh e uma penca de outros.

Parece que nos esquecemos de que o humor tem lado: o outro lado. Que não existe humor a favor. Que o humorista é o bobo da corte, aquele a quem cabe enunciar o que não queremos ouvir (o que pensamos e não chegamos a dizer, porque os neurônios estão sem sinal ou o superego não deixa). Porque se ofender virou sinal de virtude.

(Ricky Gervais já disse que só porque você está ofendido não significa que esteja certo. Que é possível fazer piada sobre raça sem ser racista e sobre os sexos sem ser sexista. Não à toa, ele, Dave Chappelle e outros igualmente dotados de coragem e inteligência bombam no streaming e lotam teatros com gente disposta a rir de si mesma —porque é sempre de nós mesmos que estamos rindo, e há quem se leve a sério demais para se permitir uma coisa dessas.)

A mesma carência de humor acontece nos jornais. A charge, que já fez jus à origem etimológica — charger: exagerar, atacar —, virou exercício de sabujice.

Foram-se os tempos do Luísque Inácio da Silva (Bussunda) e do Viajando Henrique Cardoso (Hubert) no “Casseta & planeta”; do exilado Sebá (Jô Soares), que não conseguia retornar por causa do caos econômico do fim da ditadura (em “Viva o Gordo”); do não tão jovem militante Washington (Chico Anysio), revolucionário anticapitalista vivendo à custa dos pais (“Chico Anysio Show”).

À TV aberta, à imprensa e ao distinto público em geral, Millôr deixou um recado:

— Fiquem tranquilos: nenhum humorista atira para matar.

No máximo dói um pouquinho quando você ri.

Eduardo Affonso, arquiteto e cronista

Fonte: https://oglobo.globo.com/